
Comecei a dar aulas com 16 anos. Na ocasião, fazia o curso de Magistério (nível de Ensino Médio, porém era um curso técnico profissionalizante), o que me habilitava (na época) a lecionar para as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Trabalhava pela prefeitura de minha cidade (Visconde do Rio Branco, em Minas Gerais) mas em um projeto do Governo Federal chamado “Educar”, e meus alunos eram crianças bem carentes da periferia da cidade. Eles tinham entre 4 e 6 anos e eram todos vizinhos, moravam em casas muito humildes de uma rua sem calçamento. A escola funcionava em um imóvel que pertencia a um centro espírita kardecista. Consistia em uma sala enorme, com carteiras, quadro de giz e um armário com livros da doutrina espírita; uma cozinha pequena e precária; um quartinho para guardar os mantimentos e onde eu guardava também meus livros de literatura e materiais didáticos; um banheiro e uma varanda. As funcionárias ali éramos eu e a senhora que trabalhava como cozinheira e faxineira. Só. Não havia pátio, as crianças brincavam, na hora do recreio, em frente à escola, na rua mesmo. Normalmente, não passavam carros ali. Não sei se a rua tinha um nome oficial, todos conhecíamos o lugar como “Rua dos Bois”.
Passei muitas dificuldades e fui muito feliz ali. Mas esta história não é sobre o período que trabalhei na Rua dos Bois. Isso conto em outra ocasião. Esta história é justamente sobre quando saí de lá.
Como é bem comum na educação, o Projeto Educar não foi pra frente. O governo federal cessou com as verbas, a escola fechou e as crianças tiveram que ir para escolas mais distantes. Ou simplesmente ficaram em casa. A senhora que cozinhava perdeu o emprego. E eu me tornei uma funcionária que a Prefeitura deveria remanejar.
Nessa época, já estávamos no segundo semestre, fim de agosto, início de setembro. No fim do ano eu prestaria vestibular em Viçosa, na UFV (Universidade Federal de Viçosa) e, se passasse, não moraria mais em Visconde do Rio Branco. Então, a perda do emprego não me incomodava tanto. Mas fui remanejada para uma escola que ficava na saída da cidade, na estrada que levava à cidade vizinha, Ubá. Para chegar à escola, eu teria que pegar o ônibus intermunicipal. Como o salário era muito baixo, não compensaria financeiramente o que eu gastaria com passagens de ida e volta. Ficou combinado, então, que eu iria e voltaria de carona com a diretora, todos os dias, pois ela ia de carro. Eu nem a conhecia, mas era a única solução e foi assim que comecei a trabalhar nessa escola.
A escola era bem mais estruturada que a minha sala do centro espírita. Tinha diretora, professores, auxiliares de serviço. Mas era uma escola de zona rural, portanto, bem diferente das escolas onde estudei.
As salas eram multisseriadas. Eu iria trabalhar auxiliando uma professora que dava aulas para crianças de segunda, terceira e quarta séries, todas juntas na mesma sala. Era uma loucura. Dividíamos o quadro com um traço feito com giz e separávamos mais ou menos as crianças. Eu não entendia como alguém podia aprender naquele ambiente. Mas algumas crianças são mesmo guerreiras.
Um desses guerreiros me chamou a atenção desde o início. O nome dele era Sebastião.
Ele tinha 9 anos, pele morena, num tom claro, cabelos e olhos pretos. Não desgrudava de uma menina chamada Sandra. Eram vizinhos, ela era um ano mais velha e meio ídolo dele. Não só dele. Era a menina “mais esperta” da sala. Tinha uma letra bonita, produzia belos textos e acertava tudo em Português. Ela se destacava. Sebastião, ao contrário, penava nas aulas da nossa língua materna. Não tinha uma letra muito boa, não escrevia bem e lia com muita dificuldade, juntando as sílabas e gaguejando.
Mas Sebastião era fera em Matemática! Em cálculo mental, ninguém o vencia. Calculava com uma agilidade incrível. E entendia também de Matemática Financeira. Até porcentagem, que a gente ainda não tinha estudado, ele sabia. Nessa matéria, era muito melhor que Sandra. Ele mesmo dizia:
- Professora, a Sandra escreve e lê melhor que eu. Mas em matemática ninguém me ganha. A Sandra nem chega perto!
Ele ria e completava:
- Meu vô tem uma vendinha. Quando eu crescer, quero ter uma venda bem maior que a dele. Venda não, supermercado. Pra que eu vou querer aprender português? Quero só ler melhor pra ninguém me passar a perna. Meu negócio mesmo é conta. Lá em casa eu que compro tudo, eu que resolvo tudo pra minha mãe.
Disse a Sebastião que ia ajudá-lo a ler melhor e que iríamos melhorar também a escrita dele, para que as pessoas entendessem o que ele escrevia. E que com o tempo ele veria se era isso mesmo que queria, ser comerciante.
Os dias se passavam e Sebastião melhorava um pouco em português. Pouco. E ia cada vez melhor na matemática. Eu olhava para aquele seu sorriso de canto de lábio e já o imaginava negociando, vendendo, comprando... sempre com aquele sorrisinho.
Gostava das crianças, mas nunca me adaptei muito na escola. Alguns professores me olhavam com certa desconfiança; acho que porque eu chegava com a diretora, pensavam que eu era uma espécie de “espiã” dela. Tolice. Íamos e voltávamos juntas, mas não tinha a menor intimidade com ela.
Fazíamos filas com as crianças na entrada e após o recreio, para voltar para a sala. Um dia, na fila da entrada, a diretora chamou um dos alunos. Um menino franzino, chamado Pedro. Não dava aulas para ele, mas conhecia sua fama. Era um aluno daqueles que aprontam o tempo todo e deixam o professor louco. Mas uma criança. Quando Pedro chegou perto dela, lá na frente de todas as filas, a diretora começou a berrar. Disse que no dia anterior ele tinha esbofeteado um aluno. Xingou o menino de várias coisas. E chamou o aluno que, segundo ela, tinha sido agredido por ele. O tal menino foi até ela, assustado. Então, ela segurou Pedro com força e mandou que o menino o esbofeteasse. Eu não acreditei no que ouvi. Nem o menino, que olhou para ela ainda mais assustado. Ela repetiu a ordem. Eu me aproximei, mas juro que achei que não fosse acontecer. Na minha cabeça não era possível que uma diretora fizesse aquilo. Não sei, achei que ela fosse dizer que não era pra fazer de verdade. Mas era sério e enquanto eu me aproximava, o menino esbofeteou Pedro. Assim, com a diretora segurando e todos olhando. O grito saiu da minha garganta tão alto que parecia que o tapa havia sido em meu rosto:
- Não!
Todos se voltaram para mim, eu balançava a cabeça e falei baixo:
- Não, não.
A diretora deu um sorriso sem graça:
- Ele nem bateu de verdade.
As professoras começaram a entrar para as salas com os alunos. Meus alunos entraram com a outra professora da sala. Mas eu não conseguia sair do meu lugar. Finalmente me aproximei da diretora e disse a ela:
- A gente não pode fazer isso. Não se pode humilhar alguém assim, muito menos uma criança.
- Ele bate em todo mundo aqui. – ela disse – Já estava na hora de alguém revidar. Se não fizermos isso, ele se torna o valentão da escola e daqui a pouco está batendo em nós.
- Nós somos educadoras. Não podemos ensinar as crianças a serem violentas. Somos adultas, nós é que temos que ser racionais, não elas. Você não tem o direito de fazer isso. Eu nunca vou aceitar que uma criança seja tratada assim. Eu não vou aceitar.
- Você não entende. É muito novinha, ainda não viu nada, não sabe o que é uma escola.
Ela me deu as costas e saiu. As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, bem quentes. Fiquei parada, chorando, olhando para o vazio. Então, ouvi uma voz:
- Não chore, professora. O Pedro já está acostumado com isso. Ele apanha do pai dele todo dia mesmo.
Era Sebastião, com aquele sorriso de canto de lábio. Olhei pros olhos brilhantes e escuros dele. Mesmo quando ele sorria, os olhos de Sebastião tinham uma tristeza misteriosa. Disse:
- Não, Sebastião! Ninguém pode se acostumar com humilhação, com tristeza, com sofrimento! Não pode! Todos temos defeitos e todos temos valor! É como você me diz sempre, a Sandra é boa em português, você é bom em matemática, todo mundo é importante!
- Eu sei, professora.
- Ninguém pode se sentir superior a outro a ponto de maltratar e humilhar. Nunca deixe que façam isso com você, viu...
- Eu não sou bobo, professora. Eu não deixo.
Ainda chorei naquela noite e a cena não me saía da cabeça. Não tinha coragem de comentar com ninguém, tinha vergonha por todos ali que se calaram, pela diretora com sua arrogância e por mim, que não sabia como deveria agir. Só comentei por alto com a minha mãe, mas sem entrar em detalhes.
O fato é que a diretora não mais voltou a ter essas atitudes. Não sei se ela teve medo de uma denúncia, se foram minhas palavras... Mas ela, que ia se aposentar no fim do ano, ficou mais branda com os meninos durante o resto do período letivo.
Em dezembro, numa sexta-feira, Sebastião me trouxe um saquinho de balas. Agradeci e ele sorriu, aquele sorriso mesmo:
- Comprei com meu dinheiro. Eu ajudo meu pai, ele me paga e eu guardo.
- Pro seu supermercado – eu disse.
- É, pro meu supermercado.
Guardei as balas na bolsa, para mais tarde, como sempre faço. Até hoje, minha bolsa vive cheia de balas que ganho dos alunos! Quem quer uma balinha sabe sempre que é só me procurar... Na segunda-feira a diretora não foi para a escola, tinha uma reunião. Fui de ônibus e me atrasei um pouco, quando cheguei os alunos já estavam em sala. A primeira coisa que notei foi a carteira vazia do Sebastião. A segunda foi o rosto triste de Sandra. Antes mesmo de dar bom dia aos alunos, perguntei para Sandra:
- Cadê o Sebastião?
- Ele morreu, professora.
O ar ficou irrespirável, o chão sumiu sob meus pés e a voz da Sandra parecia um som distante:
- Sexta-feira... quando acabou a aula... a gente ficou por aqui brincando um tempo... antes de ir pra casa. Lembra que a gente tinha que atravessar a estrada pra chegar em casa? Então, foi assim... Ele correu e disse que ia chegar na minha frente. Um carro veio e atropelou ele. Ele já chegou no hospital morto. O enterro foi no sábado.
Seriam necessárias dezenas de postagens para descrever tudo o que senti naquele momento, e no restante daquele dia, e em todos os outros dias, principalmente quando chegava na escola e não via o sorriso matreiro e os olhos profundos de Sebastião. E também para contar o quanto eu chorei e o quanto me lembrei dele em tantas noites! Ou para falar da minha angústia e dos meus questionamentos, do meu repetido “Por quê???”... que ficou na minha garganta por tanto tempo, assim como as balas de Sebastião, que permaneciam no fundo da minha bolsa.
A verdade é que o ano letivo acabou dias depois... Eu prestei o vestibular, passei na UFV, me mudei para Viçosa e já em janeiro consegui emprego em uma ótima escola da cidade... Depois me mudei para Belo Horizonte, me casei, tive 2 filhos, passei em concursos da prefeitura de BH e do governo de MG... me formei em Administração e em Matemática... e hoje dou aulas de matemática em uma escola bem organizada.
Tantos alunos já passaram pela minha vida! E nunca me esqueci do rostinho de Sebastião. Não sei quanta diferença eu fiz em sua curta vida. Mas sei da enorme diferença que ele fez na minha! Tenho alunos muito difíceis e problemáticos, todos os anos, como qualquer professor. Chamo a atenção deles, brigo, sou firme. Reclamo, falo com os pais. Mas também tento fazer bem mais que transmitir conteúdos, sou carinhosa, amorosa e os trato com respeito. E sempre, por mais estressada que esteja, procuro pensar que aquela pode ser a última vez que nos vemos. E isso, sinceramente, faz toda a diferença!
Hélia
“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã.
Porque, se você parar pra pensar, na verdade não há...”
(Renato Russo)